Preciso fazer a reciclagem, mas ouvi falar que a lei vai mudar. Devo esperar?


  

  Certamente você ouviu falar que o Código de Trânsito Brasileiro sofreu uma profunda alteração no ano de 2020, e que a partir de 12 de abril de 2021 tais mudanças passarão a viger e gerar efeitos em todo o território nacional.

  Da mesma forma, você também deve ter ouvido ou lido por aí que essas mudanças poderão “livrar” alguns condutores de eventuais penas de suspensão do direito de dirigir, especialmente porque o limite de pontos passará para quarenta (caso não exista nenhuma multa de natureza gravíssima); trinta (na hipótese de existir apenas uma multa gravíssima); ou se manterá nos atuais vinte (caso existam duas ou mais multas de natureza gravíssima no somatório dos pontos).

  Pois bem, o princípio jurídico que permite chegar a essa conclusão chama-se “Retroatividade da lei mais benéfica”. Trata-se de um preceito normativo de natureza penal, previsto no art. , inciso XL da Constituição Federal [1] , bem como no art. parágrafo único do Código Penal [2], afirmando que, em regra, a lei não retroage exceto se for para beneficiar o réu.

  Um exemplo disso foi o que aconteceu com o crime de adultério, que até 2005 estava previsto no Código Penal. Ainda que fossem raros os processos criminais ou condenações pelo cometimento desse delito, caso houvesse em 2005 alguém condenado por essa prática, a retirada da previsão legal do Código Penal autorizaria a retroatividade do benefício a todos os condenados pelo cometimento dessa conduta, pois passou a não ser mais considerada criminosa.

  Mas há quem questione: por se tratar de um princípio de natureza penal, não seria aplicável apenas a essa esfera jurídica?

  Felizmente não. No âmbito do direito administrativo sancionador, como é o caso das penalidades de trânsito, tanto STF[3] como STJ[4] já enfrentaram o tema, concluindo que às penas restritivas de direito é perfeitamente aplicável o Princípio da Retroatividade da Lei mais Benéfica.

  É por esse motivo que condutores que possuem processos de suspensão do direito de dirigir pelo somatório de 20 pontos[5] em andamento, poderão requerer na Justiça o reconhecimento da aplicação desse princípio, caso não possuam multas gravíssimas em seu cômputo.

  Em outras palavras, significa dizer que quem ainda não teve a penalidade definitivamente aplicada, pode pensar seriamente em buscar um advogado especialista em trânsito de sua confiança para lhe auxiliar nessa tarefa.

  Todavia, para quem já está com a penalidade aplicada e, portanto, com a carteira de habilitação bloqueada e cumprindo o tempo de suspensão (de seis meses a um ano), não nos parece muito inteligente esperar até depois de 12 de abril de 2021 para só então submeter-se ao curso de reciclagem.

  Isso, porque enquanto não cumprir esse requisito (submissão ao curso de reciclagem), continuará com a restrição no RENACH[6], estando impedido de receber o documento de volta (caso o tenha entregado para antecipar a penalidade), renovar os exames médicos, requerer 2º via ou Permissão Internacional para Dirigir[7], o que, no fim das contas, acabará “aumentando” o tempo da sua pena.

  Além disso, mesmo que já tenha decorrido todo o tempo de suspensão que lhe foi imposto, muitos órgãos de trânsito do país autuam com base no art. 162II do CTB [8][9] aqueles condutores flagrados dirigindo com a CNH bloqueada.

  Ainda que se trate de entendimento em desacordo com o que prescreve a Res. 723/18 do CONTRAN, tal autuação de trânsito poderá desembocar na instauração de um processo de cassação do direito de dirigir [10], que lhe retirará a licença por dois anos, necessitando requerer a reabilitação caso deseje voltar a dirigir.

  Não suficiente isso, na esfera cível, estar com a carteira de habilitação bloqueada pode gerar a negativa do pagamento do seguro em caso de sinistro, enquanto na criminal, eventual agravamento de pena. Ou seja, uma dor de cabeça completamente evitável.

  Por tudo o que foi dito, e considerando que o reconhecimento da retroatividade não se dará administrativamente, ou de forma automática pelos órgãos de trânsito;

  Considerando que ainda faltam aproximadamente dois meses e meio para a entrada em vigor da Lei 14.071/20.

  Considerando que a ação judicial somente poderá ser proposta após a vigência da lei, sem contar o tempo necessário para a sua elaboração, distribuição, apreciação de pedido de liminar, além dos riscos inerentes a qualquer processo judicial (não existe “causa ganha”).

  Considerando os custos para a contratação de um advogado em comparação com as despesas para a aquisição de um curso de reciclagem.

  Parece-nos que a resposta à pergunta do título será um categórico NÃO, pois em uma rápida avaliação de custo x benefício, submeter-se à reciclagem ainda será a forma mais rápida, barata e certa de voltar a dirigir.

  Todavia, se você ainda possuir prazo para recurso administrativo em processo de suspensão por pontos, talvez seja interessante consultar um profissional especializado na área para avaliar o SEU caso e verificar o SEU custo x benefício para o ingresso de medidas legais que visem impedir que tenha o direito de dirigir suspenso por no mínimo seis meses.

 


Rochane Ponzi

Rochane Ponzi

é advogada, especializada em Direito de Trânsito. Professora. Palestrante. Membro da Comissão de Defesa, Assistência das Prerrogativas da OAB/RS (CDAP-OAB/RS). Coordenadora do Grupo de Estudos em Direito de Trânsito da Escola Superior da Advocacia (ESA-OAB/RS). Representante do Movimento Maio Amarelo no Estado do RS (ONSV). Vice-Presidente da ABATRAN (Associação Brasileira dos Advogados de Trânsito).

NOTAS:

[1] CF – Artigo , inciso XL: A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

[2] CP – Artigo  parágrafo único: A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

[3] Vide voto STF, Rcl 41.557.

[4] Vide acórdão STJ, RMS 37.031.

[5] A retroatividade da lei mais benéfica somente atingirá processos de suspensão pelo somatório de pontos inferior a 30 (uma gravíssima) ou 40 (nenhuma gravíssimas), não abarcando os processos de suspensão instaurados em decorrência do cometimento de uma única infração, como é o caso de PSDDs por embriaguez ao volante/recusa aos testes (art. 165/165-A), excesso de velocidade em mais de 50% da via (art. 218, III), racha (art. 173), entre outros. São 20 artigos no CTB que têm previsão autônoma de suspensão do direito de dirigir.

[6] RENACH é a sigla para Registro Nacional de Carteiras de Habilitação.

[7] CONTRAN, Resolução 723/18. Art. 16, § 3º Cumprido o prazo de suspensão do direito de dirigir, caso o condutor não realize ou seja reprovado no curso de reciclagem, deverá ser mantida a restrição no RENACH, que deverá ser impeditivo para devolução ou renovação do documento de habilitação, impressão de 2ª via do documento de habilitação físico ou emissão de Permissão Internacional para Dirigir – PID.

[8] CTB, Art. 261§ 9º: Incorrerá na infração prevista no inciso II do art. 162 o condutor que, notificado da penalidade de que trata este artigo, dirigir veículo automotor em via pública.

[9] CTB, Art. 162. Dirigir veículo: II – com Carteira Nacional de Habilitação, Permissão para Dirigir ou Autorização para Conduzir Ciclomotor cassada ou com suspensão do direito de dirigir. Infração – gravíssima; Penalidade – multa (três vezes); Medida administrativa – recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado;

[10] CTB, Art. 263. A cassação do documento de habilitação dar-se-á: I – quando, suspenso o direito de dirigir, o infrator conduzir qualquer veículo;